Portugal de comboio

05/10/2020

Do Porto ao Porto de comboio, fazendo uma argola ao país, o muito que se vê é o que se sente. Seja no conforto asséptico do Alfa Pendular ou no lifting do regional da Beira, Portugal visto pela janela do comboio vale bem a pena.

Porto – Lisboa no Alfa Pendular

Descobri, finalmente, em Lisboa a cidade mestiça. Eis que me chega a visão do mulato sobre o branco da cidade. A urbe é de quem a gasta. E quem o faz, no escuro do metropolitano, nos cafés e nas praças é uma mistura de gente de múltiplas proveniências. Lisboa é africana, portuguesa sem o ser, brasileira, árabe.

Há uma imperceptível ausência de moralismo, própria dos lugares sem raiz. Um desprendimento que não é só de cidade grande. Numa qualquer esplanada do bairro da Graça, encavalitado a calcário, a casa prolonga-se para a rua.

É o espaço para onde se entra, à procura da bica e de um cigarro fino, para saborear um início de tarde de domingo. Cá e lá, os eléctricos baixam e trepam as ruelas, qual carrossel, carregados de turistas e calor.

Na paragem do Estoril, já perto da Baía de Cascais, um grupo de mulatas exibe cabelo e corpo para o sol. Irão, por certo, juntar-se aos magotes de gente das praias da linha. E o que se vê são uns franceses vermelhos, fazendo da areia o chamariz para a sua caça.

Lisboa diz-se fado, pastéis de Belém, Castelo de S. Jorge, Rossio e Betesga. Mas o seu encanto vem-me desta tonalidade africana, que não é nova, deste usufruto despudorado que a transforma numa luz poeirenta, mulher vaidosa e madura.

Lisboa – Castelo Branco, no Intercidades

Ansiava por conhecer a linha que se encosta ao vale do Tejo. E acabei a dormitar, embalada pela galhofa do grupo de escuteiros que emparceirou a viagem. Repito: vê-se o que se sente. O Tejo perde a arrogância de estuário, torna-se humilde, ainda que firme, marcando a paisagem ribatejana. Merece ser percorrido, mas não tira o fôlego.

Melhor foi a chegada ao abafo de Castelo Branco, sempre pedra. Apesar da interioridade, Castelo Branco é arejada. Junto à sede do Município, estão “as docas”, um clássico das cidades portuguesas, que se baptiza para além da obrigatória presença de um rio. Seja. As docas dão para comer um gelado, uma boa tosta de pão saloio ou simplesmente para explorar uma sombra preguiçosa nas aflições do calor.

Mesmo em frente ao jardim do Paço Episcopal, o parque da cidade é um refúgio abençoado a água. O primeiro não merece os dois euros da entrada (mau grado os seus atributos arquitectónicos), já o segundo é frescura garantida. Seja no amparo das árvores, seja nos espelhos de água, que dia sim dia sim têm quem por lá se refresque como quem não quer a coisa.

Partida: Castelo Branco – Covilhã, no comboio regional

À medida que os montes se fazem mais duros, as gentes também vão enrijecendo. De Castelo Branco à Covilhã, os homens são sólidos, camisa de xadrez e chapéu na cabeça. As mulheres vestem saia cortada a direito e blusa de viscose, às florzinhas miúdas. Pelo menos por aqui, a CP remodelou as antigas locomotivas. Então, o comboio que chega parece ter feito um lifting, recuperado a verde, sem os bancos em napa de outros tempos.

Discute-se futebol, num percurso lento, que nos vai engolindo para as serras. Difícil despistar a monotonia desta Linha da Beira, que se faz de uma pasmaceira deliciosa, mesmo para o maquinista, que é afinal parte do bicho, arrastando-se pelos carris.

A Covilhã, enfim. Alta, teimosa de se construir no sopé do monte. Em vésperas de jogo da selecção de futebol, é o tudo ou nada que se pratica na Covilhã. E os autocarros lá vão correndo com o “Força Portugal” no quadro electrónico. Talvez por ganho da universidade, a Covilhã tem o seu quê de contemporaneidade. Nos restaurantes que, aqui e ali, vão reinventando o regional, no shopping que veste as mulheres com ar de litoral.

A cidade vive os seus meses de inferno na piscina com ondas, qual praia na Estrela plantada. É ali que os adolescentes passam as férias, como também é lá que o nadador-salvador desportista encanta miúdos e graúdos a esbracejar para o pessoal dentro e fora de água lições de hidroginástica de rigor duvidoso. Toda a gente permanece numa vaidade forçada.

Partida: Covilhã – Vila Nova de Foz Côa, na Rede Expressos

A Rede Expressos faz-nos acreditar no Portugal profundo, limpo do pó de arroz da modernidade. Aqui, tudo continua a ser como antes, ainda que os autocarros sejam um pouquinho mais cómodos. Logo o início foi um equívoco. Apesar da eficácia do site da empresa, na bilheteira, o quadro desmonta-se: “Esse horário não existe, há muitos horários errados na internet”.

Num fim de tarde calorento, dissemos adeus à cidade empoleirada. “Isto tem tudo para correr mal”, comentava uma rapariga para o namorado, ao ver mochilas, sacos e malas térmicas atiradas para a mala do autocarro. E não é que tinha mesmo? Nem foi só por causa do mau humor do motorista, ansioso por chegar à garrafa a gelar no frigorífico, “desde o dia 21”. É legítimo.

Em Celorico da Beira, a mudança do autocarro trouxe um veículo aos soluços. Foram mais de dez quilómetros a 30 à hora, até Trancoso, assistindo às indecisões de um condutor que parava a camioneta, voltava a tentar andar, mexia em documentos, já transpirava para lá do calor, sem dar cavaco aos passageiros.

Conclusão: em Trancoso o transporte recusou-se a avançar. Os chefes que mandam vir os carros de substituição, à hora do jantar, já não estavam para dar ordens. O motorista suava cada vez mais, até que mandou a meia dúzia de Foz Côa para os táxis ali ao pé. Ignoro o que aconteceu aos desgraçados que seguiam para Bragança.

Foz Côa

Há uns anos, as gravuras rupestres de Foz Côa levavam romarias à vila. Na altura, eu via na povoação um ponto de passagem para a extinta linha do Douro, entre o Pocinho e Barca D’Alva. Voltei a Foz Côa sempre com os almendrados e o rio como bússola. Agora, esta seria a derradeira paragem, antes de entrar no comboio para o Porto.

Não tenho dados estatísticos, mas a sede do Parque Arqueológico do Vale do Côa surgiu-me muito às moscas. A vila continua a vida independente desses acasos. Por cá, os restaurantes servem carne, muita carne, e não há assim tantos turistas.

Sabe bem passear pelas ruas, à sorte, girando e voltando a girar, pelas casas limpas com plantas, pelas casas velhas e abandonadas. Até por um espaço requalificado, já nas margens da vila, que foi bonito no dia da inauguração e agora carece de quem lhe limpe as ervas.

De madrugada, quase dia, o rumor dos trovões vem vindo lá da montanha. Como um rufar de tambores. Antecipando o quente, a rola já ri na árvore, enquanto o gato preto espreita as andorinhas doidas, inaugurando a manhã. Donas do espaço. Os montes pesados ainda escondem o sol, neste amanhecer do Alto Douro, que se revela como nos inícios. Ar lavado, dia que se compõe.

Partida: Pocinho – Porto, no Comboio Regional

Ta-tam, Ta-tam. A linha do Douro tem este cheiro especial, o ar que entra pelas janelas aos trambolhões. Entre túneis e vinhas, a máquina só deixa o rio mais longe, já depois da Régua. Nos entretantos, as montanhas lavradas são tão estáticas que se diriam gravuras, pintadas de casas brasonadas, algumas decadentes, outras turísticas, outras resistentes de tradição.

O Pinhão encanta a cada visita, com a ponte aos arcos, um cantinho aninhado no rio. Ta-tam. Barcos turísticos rasgam a linha de água, de um Douro que ora esgravata a rocha ora se estende em pequenas praias. Douro vinhateiro, que se desfaz no mar do Porto.